1992
Em uma madrugada de 1992 em São Paulo , despertavam dois amigos, mais precisamente às quatro da manhã, hora que não poderiam se dar o luxo de perder, pois seriam penalizados por sua própria necessidade de sobrevivência. Em meio a um amontoado de madeiras e um odor que jamais esqueceriam mesmo que tentassem. A realidade imposta para suas vidas lhes permitia, sem outra opção, forçar a convivência neste ambiente ora hostil, ora favorável, que ficaria no decorrer de suas vidas na sua memória, enraizado como um salgueiro centenário.
Em um percurso silencioso e sereno, alguns homens embriagados disputavam lugar com os moradores de rua por um espaço para um breve descanso. Pais e mães de família aguardavam aos montes em um velho pedaço de madeira pintada de azul onde os ônibus paravam com destinos variados. Um valetão chamava a atenção dos garotos, pois não havia água nele e sim uma série de objetos e oferendas que eram depositadas no local onde os ratos e cachorros faziam morada.
Chegada ao destino que tanto almejavam e os motivava a tão cedo estar de pé, uma fábrica de pães que distribuía alguns deles gratuitamente até determinado horário; a alegria de serem os primeiros a receberem seu prêmio irradiava seus olhares e trazia uma perspectiva de auxiliar a família, contribuindo com o que conseguira. A responsabilidade habitava no interior destas crianças de sete anos (Tico) e seis anos (Mú).
Como de costume quase generalizado naquele bairro por pai ausente ou entregue a bebida, talvez a iniciativa dos garotos fluísse mais prematuramente, e sentiam a necessidade de contribuir de alguma forma para evitar tais dificuldades.
É chegada a hora de ir para a escola, os pães são guardados em casa e agora a educação entrava em cena, mais dificilmente seria aprendida, pois em suas mentes as preocupações ostentavam como prioridade nas suas vidas. É claro que existia uma hora muito boa para a criança esquecer-se das dificuldades e, de fato, era a hora das atividades físicas que envolviam uma série de brincadeiras que compunham a grade escolar e correspondiam com alegria aos alunos que, por um momento singelo, se entregavam à felicidade.
No término da aula um pensamento sorrateiro tomava conta de suas mentes como se os obrigasse a acordar para a vida e novamente retornar as suas casas e enfrentar a realidade que se resumia a um prato de arroz e um caldo de limão que ficaria em seu estômago como uma possível última refeição, já que o amanhã era incerto e o auxílio provinha de parentes e vizinhos solidários com a situação apresentada.
Em contraste de Um Artista da Fome (Franz Kafka, 1922), os garotos não viam a fome como arte e sim por necessidade que trazia a dor, a angústia e o desespero em ver seus corpos serem definhados por uma situação triste e desonrosa que qualquer ser humano de bem não desejaria para o pior inimigo. A fome anunciada e ao mesmo tempo compartilhada em todo o mundo não teria solução, a não ser saciá-la com um banquete generoso que os seus mais profundos sonhos ostentavam em seu subconsciente na esperança de um dia realizá-lo.
Os dois amigos Tico e Mú sempre estavam juntos e compartilhavam da mesma realidade e isso fortalecia seus laços de amizade que, por pior que fossem as condições em que viviam, sempre estavam juntos, os amigos inseparáveis que não se desgrudavam, riam e choravam juntos.
A mudança fez com que os amigos se separassem, pois a família de Mú, ao ver de perto a situação vivida pela criança e a mãe abandonada pelo marido e desorientada pelos acontecimentos, agora não poderia continuar desta maneira e foi retirada deste local inóspito e levada para o seu antigo lar, onde as dificuldades eram menores e Tico continuou sua saga, em uma realidade na qual tinha como objetivo conseguir sair como o amigo saiu deste mundo de desigualdade, fome e miséria, almejando um dia se encontrar com Mú, seu fiel amigo e companheiro, para colocar em prática os diversos sonhos que tiveram com seus banquetes e festanças, nas quais se empanturrar sem desperdício era o lema imposto por decisão impune dos amigos. A fome vivida por estas crianças não os deixará perecer, um laço de amizade muito forte foi criado e ao mesmo tempo destruído quando se separaram fisicamente, mas conscientemente sempre estarão juntos por toda sua existência.
Thiago Pestana - História